Jornalistas enfrentam censura nas ruas e vão parar no DOPS

Já no início da década de 60, antes mesmo do golpe, a vigilância sobre as redações cariocas começava a pesar. O então governador Carlos Lacerda não permitia que a imprensa defendesse a posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961. Mas o Correio da Manhã não se dobrava à censura e defendia a legalidade. Um dia Lacerda decidiu impedir que o jornal fosse distribuído. Inconformados, os próprios jornalistas do Correio colocaram centenas de exemplares debaixo do braço e foram às ruas distribuí-los de mão em mão, até serem presos. Essa história é contada a seguir por Fuad Atala, que fez parte deste grupo.

Evocação sem nostalgia*

Fuad Atala**

O Correio da Manhã era uma escola incomparável. Fiz ali meu aprendizado e boa parte de minha carreira. Foi no período romântico do jornalismo carioca. Quando tudo era mais difícil, e por isso mais saboroso de se conquistar. Não havia nem os recursos tecnológicos nem as disputas da concorrência brutal de hoje. Em compensação as relações de trabalho e o exercício da profissão tinham mais humanidade. Mas não há nostalgia na evocação desse tempo, um tempo gostoso que já passou e que não poderá deter os avanços efetivos e as conquistas desta revolução no campo das comunicações instantâneas, que está apenas no alvorecer.

Um dos fascínios do Correio da Manhã era sua inquebrantável rebeldia, sua insubmissão a qualquer forma de mandonismo. Era o traço mais marcante de sua personalidade e certamente foi o instrumento de sua destruição. Relembro aqui um episódio ilustrativo desse espírito. Quando o presidente Jânio Quadros renunciou em agosto de 61, o jornal defendeu com unhas e dentes a posse legítima do vice João Goulart, vetado pelos militares. No interregno que decorreu até sua confusa posse, Carlos Lacerda, então governador, impôs, à revelia de Brasília, a censura aos jornais no Rio. Luiz Alberto Bahia, o redator-chefe, não concordou. Não só impediu a presença dos censores na redação, como não permitiu que se tocasse em uma linha sequer do texto. A censura entrou num acordo. O jornal seria impresso sem qualquer mutilação. Em compensação, não circularia. Os exemplares seriam recolhidos pelo Dops na boca da rotativa. E assim foi, por vários dias.

Fazíamos um jornal quente, vibrante, com editoriais candentes, o noticiário contando os bastidores da trama política que se urdia visando ao impedimento de Jango, sob a orquestração de Carlos Lacerda — todo esse esforço, que se estendia até de madrugada, para nada. Frustrados ao fim do quinto ou sexto dia de trabalho infrutífero, partimos para uma proeza. Lotamos a mala do carro de um colega com exemplares do jornal e rumamos para o Tabuleiro da Baiana, no Largo da Carioca, onde os bondes da Zona Sul faziam o retorno. Começamos a distribuir o jornal. Os passageiros avançavam sobre nós disputando os exemplares. Seguimos pela Almirante Barroso e nos dirigimos à Rua México, quando fomos interceptados por um jipe do Dops. Levaram-nos para a Chefatura de Policia, na Rua da Relação.

Lá mofamos a tarde inteira até as primeiras horas da noite numa sinistra Sala de Explosivos, onde já nos aguardava um notório incorporador imobiliário da época, Santos Vahlis, que assinava no correio artigos em defesa de Jango, produzidos pelo seu ghost writer Franklin de Oliveira, um dos editorialistas do jornal. Do grupo faziam parte Carlos Heitor Cony, Aziz Ahmed, Alvaro Mendes, Paulo Ramos, chefe do arquivo, e eu. Claro, a notícia logo chegou à redação do Correio e apesar do clima truculento da ocasião foi possível “negociar” com o Dops a nossa liberação sem maiores conseqüências. A volta à redação foi “triunfal”. Fomos recebidos com ovação. Mas o jornal, que apoiou a posse de Jango, logo desencantou-se com seu governo e passou a mover-lhe feroz oposição, com ataques cada vez mais contundentes, culminando com os famosos editoriais “Basta” e “Fora”. Jango foi deposto. Começa a ditadura, na qual o Correio da Manhã percorreria o calvário que o arrastou ao fim.

Era assim o jornal fundado por Edmundo Bittencourt em 15 de junho de 1901 e que circulou pela última vez em 8 de junho de 1974, depois de passar por uma das mais cruentas perseguições que uma ditadura como a de 64 pode impor para calar a voz que tanto incomodava o regime. O espírito de seu fundador, com o grau de quixotismo que todo idealismo requer, perpassa do princípio ao fim a trajetória do Correio da Manhã. A questão que permanece no ar até hoje é: ao contrário dos demais que sobreviveram, por que só o Correio da Manhã sucumbiu ao furacão de 64? Não terá sabido, como em todas as batalhas entre forças desiguais — no caso, infinitamente desiguais —, fazer o recuo estratégico na hora certa para ganhar alento mais adiante? Ou terá preferido exaurir sua independência e rebeldia até o extremo e, vencido sem rendição, entregar-se à própria imolação?




No começo da década de 1960, o Correio da Manhã defendeu a posse de João Goulart. Porém, desencantou-se com o governo e publicou editorial na capa pedindo a saída de Jango

(*) TEXTO EXTRAÍDO do volume 1 da Série Memória, dos Cadernos da Comunicação, lançado pela Prefeitura do Rio em 2002.

(**) Fuad Atala foi editor do segundo caderno do Correio da Manhã e de O Globo.